Era uma vez… em Hollywood

Era uma vez… em Hollywood (contém spoiler)

Era uma vez…em Hollywood certamente está entre os filmes mais deprimentes de Quentin Tarantino e é, com certeza, um dos mais degradantes da condição da mulher levados à Cannes em 2019.

Durante todo o filme, o que se vê é um espetáculo de glorificação do homem, de suas armas de fogo usadas para matar e intimidar em busca de poder, dinheiro e fama, e em menor proporção, mulheres. Estas não valem sequer o esforço. Desde a primeira aparição no filme, não passam de corpos descerebrados, lascivos, lúbricos e loucos para se satisfazer sexualmente com todo e qualquer homem, desde desconhecidos motoristas de passagem até velhos decrépitos e deficientes. Por que, afinal, como todas sabemos, não são esses que diariamente, mundo a fora, sob todo tipo de artifício, seduz, sequestra, domina, ameaça, agride meninas e mulheres para seu uso sexual pessoal e coletivo.
Nenhuma, absolutamente nenhuma mulher é ouvida em Era uma vez…em Hollywood. A voz feminina só é aceita se para concordar e obedecer. Toda e qualquer tentativa de argumentação por parte delas é deliberadamente ignorada. Mulheres sem cérebro não devem ter seus argumentos considerados, menos ainda ter a palavra final. E como corpos à disposição dos homens que são, nada mais coerente que focalizá-las o máximo possível de costas e de baixo para cima em seus colants, mini saias e shorts minúsculos. As gordas não. As gordas devem estar cobertas. Acho que já identificamos aí os biotipos femininos preferidos do público que a direção pretende atingir.

O movimento hippie também, plural e amplo como foi, não saiu ileso. Seus seguidores não passavam de indivíduos imbecis, fracos, desonestos e estúpidos. Claro, opor-se à política institucional, à conduta belicista de seu próprio país, ao covarde e bárbaro massacre de vietnamitas entre outras formas da América levar seu modo de vida ao mundo só pode ser coisa de babacas otários. A essa classe de indivíduos, assim como à classe das mulheres, os homens não devem qualquer reconhecimento de dignidade humana e respeito. Assim, sob qualquer pretexto, eles podem desferir os mais absurdos ataques físicos e psicológicos, pois ainda que estejam em maior número diante do agressor, como disse acima, hippies  (e mulheres) são imbecis e fracos, são portanto incapazes de reagir. A história parece mostrar uma versão diferente.

A relação de classe também está posta. Os dois personagens principais tem entre si uma relação de vassalagem. Enquanto um aufere todo o reconhecimento simbólico e material do trabalho de ambos, ou outro se mantém fiel e satisfeito com as migalhas que recebe do primeiro, mesmo quando estas são reduzidas a um patamar ainda menor. O trabalho precarizado, inseguro, a absoluta desigualdade material entre chefe e empregado não são elementos suficientes para criar um ruído, um ressentimento.

Na verdade, o empregado, sabidamente um femicida, é o melhor, o mais fiel e único amigo do patrão, e com ele mantém a relação mais afetuosa do filme. O empregado oferece não apenas serviços profissionais, mas também apoio psicológico ao patrão que é só instabilidade emocional diante da iminente perda de visibilidade e fama no cinema. O empregado também arrisca sua vida para defender o patrão. São virtualmente um casal, só não transam entre si.
E a tolerância com criminosos contra mulheres não alcança apenas o femicida amigo do protagonista. Tarantino indiretamente, mas de modo muito contundente, absolve Roman Polaski, condenado pelo estupro de uma menina de 13 anos, após sedá-la, em 1977. A mensagem está dada: crimes contra mulheres não são importantes, pratique-os à vontade.
Destruir simbolicamente a mulher enquanto ser humano, atacar um dos maiores movimentos contra-hegemômicos e contraculturais da história recente, ao mesmo tempo que valida e reforça a violência masculina e as relações de afeto e lealdade apenas entre homens parece ser algo que vem muito a calhar neste momento histórico em que o capital, cada vez mais, arranca das costas da mulher, com seus empregos precários, terceirizados, sem direitos, a conta da crise. Que esses seres inferiores, repugnantes, dados aos apelos de seu sexo, aceitem essa condição. Caso não aceitem, movimentos de esquerda débeis não serão capazes de apoiá-la, e os homens poderão mostrar, com requintes de crueldade e aprovação pública, quem está no comando.

A sacada do diretor é o humor. O público gargalhava com uma mulher hippie sendo carbonizada pelo protagonista com um lança chamas. Sim. Foi um horrendo espetáculo de ódio contra as mulheres.