Amor Maldito: um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos

Amor maldito  (contém spoiler)

Amor maldito é um dos filmes mais sensíveis que já vi. O orgulho de saber que ele é produção nossa é imenso. E mais que nosso, é filme independente, realizado de modo colaborativo, através da comunhão e dos esforços de um conjunto de pessoas que apostaram na potência dele.
Amor maldito conta a história do amor entre duas mulheres. Foi escrito e dirigido pela mineira Adélia Sampaio. Em 2013, por meio de sua tese de doutorado, a pesquisadora Edileuza Penha de Souza tirou o filme dos umbrais do esquecimento e o reapresentou ao Brasil e ao mundo revelando que se tratava do primeiro longa-metragem brasileiro dirigido por uma mulher negra. Não é pouca coisa. Era 1984. O prestígio dos ditadores declinava mas a intervenção nas liberdades individuais continuava firme.
Adélia conta que, por pouco, o filme não foi rodado. Foi preciso aceitar que o regime o classificasse como pornografia para que ele pudesse ser exibido nos cinemas. Isso diz muito sobre a política supremacista masculina do estado brasileiro, que apesar de uma breve e suave amenizada, continua a todo vapor no momento atual.
Mas não, o filme não é pornográfico. Muito longe disso, o que há são belas e bem colocadas cenas de sexo entre as protagonistas, Sueli e Fernanda.
Elas se conhecem numa situação de trabalho e voltam a se reencontrar na praia, em um momento de lazer. Fernanda está acompanhada de outras amigas, com as quais brinca e se diverte. É simpática, amistosa e logo busca incluir sua nova amiga no grupo.
Fernanda parece bem estabelecida financeira e emocionalmente, mas Sueli vive uma verdadeira catástrofe pessoal. Uma imperiosa necessidade de viver a impele aos seus primeiros esboços de autonomia e independência. Ela cresceu numa família evangélica, com um pai fundamentalista, violento, e uma mãe submissa a ele. Como grande parte das meninas criadas em ambiente opressivo, era carente de reconhecimento e via sua beleza física natural como seu único meio de ascensão social. Era confusa, ingênua e, como também é comum entre mulheres oprimidas, fascinada pelo poder masculino. Na percepção fantástica de Sueli, seriam homens os que satisfariam seu desejo de visibilidade, riqueza e poder. Escolheu ser miss.
Ao anunciar sua decisão à família, Sueli é agredida e expulsa de casa pelo pai. Será Fernanda quem se solidarizará com ela e lhe oferecerá abrigo e apoio afetivo. Elas se apaixonam, se comprometem entre si, mas Sueli é incapaz de reconhecer uma mulher, Fernanda, como um apoio seguro e a menospreza, entregando-se (neste caso, o termo é “entregar-se” mesmo) a um fotógrafo a quem julga poder aproximá-la do sonho do estrelato. Não passando de um objeto para o homem, que nenhuma preocupação tem em controlar sua fertilidade, ele a engravida e depois a renega. Desiludida, confusa e humilhada, Sueli dá por fracassado seu voo rumo à condição de pessoa digna de valor, e se suicida jogando-se da janela do apartamento de Fernanda. Com isso, mais uma vez a pune. Fernanda, não sem sofrimento e contradições, já tinha aceitado a escolha de Sueli, mas por ter a amada se suicidado em seu apartamento, é sobre ela que pesa a acusação de homicídio, o que a conduz ao verdadeiro calvário do tribunal do juri.
A construção do julgamento por Adélia Sampaio é um trabalho de mestre. Fernanda é torturada psicologicamente, tem sua intimidade devassada, exposta e deformada. Um dos momentos altos do filme é quando, nos bastidores do julgamento, advogados da acusação e da defesa, na presença do juiz, todos homens, contemporizam e se deliciam com as fotos íntimas da falecida e da ré, mostrando que a rivalidade encenada diante do juri não passava, de fato, de um teatro, pois na prática, eles sempre foram cúmplices.
Essa cumplicidade fica ainda mais evidente quando o homem que engravidou Sueli nega qualquer envolvimento com ela, apresentando como justificativa o fato de ser casado. Os advogados, que tudo sabiam sobre a vida íntima das testemunhas, evitam ambos constrangê-lo com mais perguntas, diferentemente do modo insidioso e violento que vinham aplicando à inquirição das demais testemunhas, sobretudo mulheres. A diretora mais uma vez ressalta a ampla aliança entre homens: advogados da defesa e da acusação, juiz e testemunha.
Mas é o testemunho corajoso e honesto de outras mulheres e pessoas próximas, que não se deixaram intimidar, que possibilita a absolvição de Fernanda.
Há pouquíssimos negros no filme. E talvez seja sua única lacuna.
O filme acaba belissimamente com uma visita de Fernanda ao túmulo de Sueli onde escreve emocionada: “Só eu te amei”. E, de fato, Sueli não foi amada por nenhum homem, não foi amada pela mulher mais importante da sua vida, sua própria mãe, tão dominada e submissa que era.
Tanto não foi amada, que quando encontrou o amor, não soube reconhecê-lo.