A população é uma mulher

Não sou a primeira pessoa que reconhece que Trump e Bolsonaro praticam gaslighting. Gaslighting, para quem não sabe, é uma técnica de poder e controle muito utilizada por homens contra mulheres em seus relacionamentos íntimos. O gaslighter se beneficia da cultura mais ampla que educa homens e mulheres para exercerem comportamentos opostos. Homens são ensinados a identificar-se com o poder, com a superioridade, com a força, com a razão, com a inteligência. Mulheres são educadas para identificar-se com a submissão, com a fragilidade, com a necessidade de proteção, com a emoção e com a ignorância.

 

O ideal de amor romântico faz com que muitas mulheres acreditem que um homem deva ser tudo na vida para elas, a razão da vida delas, e buscarão com avidez o homem que encarne esse papel.

 

Dadas essas condições, um homem diante de uma mulher assim, poderá facilmente exercer seu poder. A fim de destituí-la de autonomia, iniciativa, independência, a fará acreditar que ela está louca, que ela não sabe o que quer, que ela não sabe escolher, não sabe decidir. O gaslighter consegue colocar essa mulher numa espécie de jaula mental, da qual ela só sairá quando ele permitir ou quando o desejo imperioso de ser livre a fizer romper os grilhões. O processo até a libertação costuma ser lento, com muitos avanços e recuos e solitário, pois amigos e parentes identificam o comportamento contraditório da mulher como um empecilho à ajuda. Os benefícios que o gaslighter tira dessa capacidade de controle total da mulher variam. Mas todos eles envolvem o prazer de dominar, de ver sua vítima prostrada, como um fantoche.

 

O que pretendo chamar a atenção aqui não é tanto para a condição da mulher, mas para a condição do País. Se Bolsonaro faz uso de uma técnica machista de modo tão eficiente contra a população, o que faz a população se assemelhar a uma mulher? Qual é a natureza da jaula mental através da qual sua política encerra toda uma nação? Vejamos.

 

A mulher é ensinada que é fraca, indefesa, incapaz de forjar por si mesmas as condições de uma boa vida. Por isso, precisa ter um homem que lhe proteja, que cuide dos seus interesses e do seu bem estar integral.

 

Do mesmo modo a população. A população é ensinada que é fraca, indefesa, incapaz de forjar por si mesma as condições de uma boa vida. Assim, precisa que o Estado lhe proteja, cuide de seus interesses e do seu bem estar integral.

 

A mulher é ensinada que não há felicidade e segurança fora do casamento com um homem. Do mesmo modo a população é ensinada que não há felicidade e segurança sem o Estado.

 

Assim, da mesma maneira que o homem machista, o Estado fala e faz coisas que soam como absurdas (e são), faz parecer que tem um poder total sobre toda a população, que está em pleno controle da situação de dominação (e está). Mas está não porque seja onipotente.

 

Enquanto a mulher não vislumbra vida autônoma e feliz fora do relacionamento com o homem, ela não consegue se libertar dele. E, de fato, muitas são assassinadas quando atingem essa iluminação. Milhares de feminicídios anuais no Brasil têm o fim de impedir que essas mulheres que se libertaram por conta própria vejam a luz do dia, que sejam exemplos para as outras, que sigam ameaçando o poder masculino.

 

Da mesma forma a população. Enquanto ela não vislumbra vida possível sem o Estado, o Estado continua dando as cartas, fazendo o que bem entende, tripudiando sobre todas e todos nós.

 

Se houve algum momento na história em que a classe governada apresentou alguma ameaça ao Estado e ao capital, foi quando perseguiu um ideal de estado diferente do que existia. Hoje, depois das inúmeras experiências históricas exemplares, sabemos que esse ideal era falso. Não precisamos de um outro Estado, simplesmente não precisamos de Estado.