George Floyd

 

 

 

Segunda-feira passada, 25/05/20, George Floyd, um homem negro de 46 anos, segurança, foi brutalmente assassinado por policiais brancos, em Minnesota, Estados Unidos. 

Imagens do acontecimento foram gravadas e mostraram um homem negro desarmado e dominado pelos policiais. Um deles se ajoelhou sadicamente sobre o pescoço de Floyd, impedindo-o de respirar, o que pode ter sido a causa mais imediata da morte do homem.

Como resposta, grupos formados majoritariamente por homens deflagraram uma grande revolta, destruindo carros, estabelecimentos comerciais, instituições públicas etc. O fato foi amplamente divulgado pela imprensa mundial. Recebi, através minhas redes sociais, inúmeras manifestações de indignação contra o crime e de exaltação da revolta. Algumas pessoas se perguntavam porque não nos revoltávamos como eles aqui no Brasil e outras teciam elogios aos brancos “aliados” que heroicamente estilhaçavam vidros  e ateavam fogo.

Mas eu não me senti contemplada com a estratégia dos revoltosos. Não mais. Antes, tal como minhas amigas e amigos virtuais, eu também me sentia realizada nesses atos viris. Eu também já desejei vê-los realizados no Brasil. Hoje, não mais. 

Todas e todos somos educados desde o primeiro momento que saímos da barriga de nossa mãe a nos comportar de acordo com a lei do mais forte; mandando ou obedecendo, batendo ou apanhando, impondo ou nos submetendo à imposição. Essa lógica foi forjada em nossas consciências ao longo de milênios e é a mais pura expressão da cultura masculinista.

A revolta de Mineápolis é a expressão do valor dos homens negros estadunidenses enquanto grupo. É muito possível que esse valor também abarque os negros europeus. Mas nenhum outro negro da periferia do mundo, vítima do racismo institucional, obtém a visibilidade dos negros estadunidenses. É unilateral. Enquanto aqui, de modo correto, estampamos para todo o mundo a indigna condição do homem negro estadunidense. Eles não fazem o mesmo em relação à condição indigna dos negros de nenhuma outra parte do mundo.

O mesmo se dá em relação às mulheres, cuja cegueira é ainda mais grave. Nenhuma mulher brutalmente assassinada por ser mulher tem ou teve uma comoção transnacional. Nenhum feminicídio, que poderia ser tomado como o equivalente do assassinato de homens negros, tem sido sentido tão profundamente. Marielle, assassinada em 14 de março de 2018, foi uma exceção. Ela foi morta como uma política que defendeu heroicamente sua comunidade, seu povo. Não seria lembrada no mundo todo se tivesse sido assassinada por um eventual marido ou ex-marido. 

Um outro motivo pelo qual o caso de George Floyd foi tão bem noticiado mundo a fora é porque os donos dos meios de comunicação, em sua imensa maioria (senão todos) homens, reconhecem nesses atos seu próprio modus operandi. Sabem que os oprimidos querem ser como eles.

 

Em março deste ano, as chilenas levaram às ruas algo em torno de 3 milhões de pessoas em protesto pacífico contra a violência contra as mulheres. Meses antes, elas também foram responsáveis por promover uma performance de dança e música contra a violência masculina que foi reproduzida por dezenas de milhares de mulheres ao redor do mundo, mas poucas pessoas não diretamente interessadas no feminismo tomaram conhecimento. E muitas das que tomaram conhecimento as ridicularizaram, porque não viram na ação delas um ato viril, másculo. Os homens, já dizia uma célebre feminista, não conseguem ver aquilo que não tem falo.

Outro fator que parece esquecido ou minimizado é que uma revolta como a de Mineápolis só é possível dentro dos limites dos países imperialistas, que buscam parecer mais civilizados e, assim, se diferenciar dos países barbarizados por eles. Os imperialistas, antes de dominar e colonizar os demais povos, tratou com sucesso de incutir sua moral política masculinista, sua noção de valor pautada na masculinidade, mas logo em seguida os emascularam. Ser homem, ser forte, ser digno, ser dominante, ser poderoso, é prerrogativa dos machos brancos dentro de cada núcleo hierárquico que participam. Desse modo, qualquer tentativa de ação viril pelos demais oprimidos, além de ser dura e barbaramente reprimida, penaliza desproporcionalmente às mulheres, essas que não foram consultadas sobre a revolta, que não estiveram envolvidas no ato, que não desejaram estar e até eram contrárias a ele. Mas no fim, são elas que terão de lidar com os feridos, os mortos e os encarcerados, bem como com os filhos desses feridos, mortos e encarcerados.

 

Cabe a nós, portanto, se queremos realmente pôr um fim nesse ciclo, redefinir os termos da luta. Audre Lorde certa vez disse que não podemos esperar desmantelar as estruturas criadas pelo senhor com suas próprias ferramentas. Creio que ela se referia ao algo do tipo. O assassinato de Floyd foi um ato racista, mas foi, sobretudo, um ato masculinista. Não nos esqueçamos que policiais negros também matam arbitrária e barbaramente, principalmente em países como o Brasil.

 

Esta crítica, contudo, definitivamente, não é um apelo à passividade. O racismo tem uma origem. Foi desenvolvido, praticado e aperfeiçoado primeiramente contra as mulheres. Esse conhecimento só a história das mulheres nos propicia, mas não podemos esperar que os homens nos provejam desse saber. 

Assim, sem eliminar a causa raiz do racismo, que é a naturalização da dominação de mais da metade da humanidade, nenhum outro sistema de opressão poderá ser, de fato, destruído. E tudo o que teremos serão exibições pontuais de revoltas viris, com eventuais ganhos exclusivamente para a classe masculina negra melhor posicionada no sistema global de opressões.

Por que o funk misógino faz tanto sucesso entre os jovens do sexo masculino negros, pobres e periféricos?

Ontem a tarde meus pensamentos foram tomados pelas letras do funk do Mc Digu que a rapaziada tocava no último volume do som de porta-malas, na rua onde moro. Impossível não ouvir.

Foto do Mc Digu, obtida do seu Instagram.

As músicas mais tocadas, quase em looping, foram “Quem não chupa é viado” e “Banco de trás do Celta”. Depois, pesquisei outras músicas do Mc e entre elas achei essa “pérola” chamada “Dim dim dim eu vou raspar seu cabelin – quer terminar?”.

Música Quem não chupa ppk é viado

Música Banco de Trás do Celta

Letra da música Dim dim dim eu vou raspar seu cabelin - quer terminar?

A primeira música fala sobre sexo oral nas mulheres. A primeira vista, parece algo progressista, já que os homens são educados, sobretudo pela indústria da pornografia, para receber sexo oral, mas muito pouco para fazer sexo oral (muito menos fazer bem feito). Não é de hoje que o movimento feminista vem denunciando que a penetração vaginal por si só oferece pouco ou nenhum prazer à mulher. A maior parte dos homens atinge o orgasmo através da penetração, mas esse não é o caso da maioria das mulheres.  É comprovado cientificamente que o orgasmo feminino, mesmo quando se dá através da penetração, decorre da estimulação do clitóris e dos lábios vaginais, por onde o clitóris, que tem em média 10cm, se irradia. Assim, é a estimulação correta do clitóris e de toda a região clitoriana que produz o orgasmo nas mulheres. Consequentemente, nada mais prazeroso para a mulher que um parceiro ou parceira que saiba fazer um bom sexo oral.

Assim, ter uma letra de funk que estimula os homens a fazer sexo oral nas mulheres pode parecer um avanço. Mas neste caso, infelizmente, não é, sobretudo quando se considera que, para legitimar a prática, foi “preciso” circunscrevê-la no rol de masculinidades (“quem não chupa pepeca é viado”), reforçando o conjunto de ações que seriam próprias de um “macho”. A música também deixa evidente que não se trata de sexo como uma troca, sexo como uma oferta, mas, sim, como em boa parte dos funks, trata-se de sexo como espoliação, como vantagem sem contrapartida. É de se supor que um sexo oral desse tipo seja horrível para a mulher já que o sujeito sequer a vê por inteiro. Nesse sentido, é uma letra tão misógina como qualquer outra que só propõe “meter”, que só pensa o pênis como instrumento de punição e submissão da mulher.

Imagem 1 – “Decretações”

A segunda música não deixa sequer margem para dúvidas: “comer as putas da quebrada/ essa virou minha meta (…) vagabunda do caralho/ hoje eu vou te empurrar meu saco”. Aqui temos a demonstração mais cabal de que o sexo não é uma relação entre iguais, mas uma relação de poder, é o espaço onde o macho reafirma sua superioridade sobre a fêmea. Onde deveríamos encontrar um ato de entrega mútua, entre dois indivíduos politicamente iguais, que confiam um no outro, encontramos um macho poderoso, portador do falo subjugador, de um lado; e do outro, a fêmea, passiva, que sente prazer em ser humilhada.

A terceira letra chega ao ponto de ser criminosa. Prescreve como punição para a mulher que decide romper um relacionamento com um homem a eliminação de um dos maiores símbolos de feminilidade: os cabelos.

Algumas pessoas poderão dar de ombros e considerar inútil analisar as letras de funk por considerá-lo intrinsecamente degenerado e “antissocial”. Esta atitude de indiferença ao funk é tão racista e misógina quanto aquela que deseja e apoia sua perseguição e criminalização. Racista porque menospreza seu público. O funk, ao lado das igrejas, é uma das poucas indústrias de entretenimento presentes na periferia e é uma das que mais movimenta a economia local, sendo consumido por milhões de jovens. E misógina porque abre mão de fazer o embate ideológico tão necessário para fortalecer meninas e jovens mulheres diante de tão violentos ataques à sua condição de pessoa.

O funk, como estilo musical, não se diferencia de nenhum outro em valor, riqueza, importância, capacidade de oferecer prazer estético e transcendência. O funk, em si, é neutro e como qualquer outra arte, pode ser usado para promover a libertação ou para fortalecer a dominação. Na minha opinião, é esse aspecto do funk, o seu uso político, que deve ser alvo de crítica.

Todos os dias saem nos jornais notícias de mulheres assassinadas por seus parceiros e ex-parceiros. A maioria delas são mulheres pobres e negras. Uma pesquisa do IBGE nos fez saber que a maioria dos casamentos no Brasil são intrarraciais, isto é, entre pessoas do seu mesmo grupo racial. Sendo assim, é de se supor que essas mulheres são assassinadas por pessoas de sua mesma classe social e raça. Isso significa dizer que grande parte dos homens e mulheres pobres e negros não são aliados, mas, ao contrário, estabelecem entre si relações de poder em que o homem domina a mulher. O feminicídio é apenas a ponta do iceberg de toda uma estrutura social que oprime a mulher e a mantém subjugada, a medida que oferece uma ilusão de poder aos homens bastante conveniente ao sistema capitalista.

Imagem 2 – Raspagem do cabelo como punição de mulheres por homens

Homens são educados através de todas as formas de manifestação artística a odiar as mulheres, a desumanizá-las, a se apropriar da sexualidade delas tornando-a um instrumento de uso pessoal e coletivo, e a transformá-las em coisas frente às quais eles podem exercer as mais criativas e cruéis formas de poder.

Nesse sentido, o funk (mas não só, que fique evidente) tem sido usado como um poderoso meio para disseminar entre jovens pobres e periféricos um modelo de masculinidade que é intrinsecamente supremacista e se baseia no ódio contra as mulheres. O funk misógino têm educado os rapazes sobre “o que é ser homem”. A masculinidade hegemônica é encarnada pelo homem branco, heterossexual e rico. Ele “tem” mulheres, veículos de luxo, roupas de grife, subordinados e podem obter anuência tanto pela concessão de benefícios e privilégios quanto pela negação deles. Ele têm poder porque a sociedade foi toda estruturada para beneficiá-lo. Diferentemente da mulher preta que continuou explorada como empregada doméstica  e na casa grande, o homem preto foi literalmente jogado na marginalidade com o fim da escravidão. Ele é um refugo dessa sociedade; não tem, portanto, meios de ostentar essa masculinidade, ao menos não dentro da lei. No entanto, essa é a única forma de ser homem que ele aprendeu e que é reforçada todos os dias, inclusive através da música que ele mais gosta. Tendo a mãe e o pai, quando este é presente, superexplorados e precarizados, ou desempregados, vivendo de “bico” um dia de cada vez, o jovem preto e periférico não tem como ostentar bens de luxo e roupas de marca, a menos que roube; não tem como ter subordinados, a menos que entre para a empresa do tráfico e suba na hierarquia, não tem como obter anuência, a menos que use a violência. Outros modos se conquistar superioridade, como o futebol, a música, atraem milhões de jovens, mas premia apenas alguns poucos. A educação, a carreira militar e religiosa são outras alternativas, mas exigem alguns requisitos inatingíveis para muitos jovens pobres. A única “coisa” que o jovem periférico tem, com certeza e independente de condicionantes, para exercer sua masculinidade, isto é, seu poder “natural” conferido a ele ao nascer pelo patriarcado, é a mulher. É sobre as meninas e jovens mulheres que os rapazes, independente de se tornarem ladrões, traficantes ou valentões (ou tudo isso junto), tem certeza que poderão se sentir superiores. Daí o motivo pelo qual o funk proibidão faz tanto sucesso entre eles.

       

A dominação da mulher, da jovem mulher, nesse contexto, para grande parte dos rapazes é o  elemento mais acessível  para compor sua masculinidade. E elas, não tendo acesso a um discurso feminista consequente, pois o discurso que chega só as têm feito tirar a roupa mais cedo, mais fácil, e para mais pessoas (para o mundo inteiro, na verdade, através das redes sociais), não conseguindo acessar um discurso contrahegemônico que seja capaz de fortalecê-las diante dessas estruturas, acabam, em incontáveis casos, sucumbindo à ideologia machista e introjetando a misoginia. Desenvolvem prazer em ser usadas, exibidas como troféu e em rivalizar com suas iguais. Além disso, reforçam o comportamento masculino misógino ao menosprezar os homens em quem não reconhecem aqueles sinais de poder.

Algumas poucas tentam fazer uso do funk para se afirmar, afirmar a humanidade da mulher, mas tendo como referência de poder apenas o poder masculino, recaem no erro de tentar inverter o discurso como se tivessem em pé de igualdade com o homens: se auto proclamam fortes, fazendo no plano da arte, da ficção, o que os homens fazem com elas na arte e na vida real, o que, evidentemente, surge pouco ou nenhum efeito estrutural.

Enquanto o sentimento de poder dos jovens pretos, pobres, favelados ou de quebrada tiver como um dos seus principais pilares a anulação, a desumanização, a dominação das mulheres pretas, pobres e faveladas, nenhuma luta conjunta e eficaz poderá ser travada contra nenhuma outra forma de opressão.

Enquanto as jovens pretas, pobres e faveladas ou de quebrada acreditarem que têm apenas seu corpo e sua sexualidade como elemento de poder, nenhuma luta conjunta e eficaz poderá ser travada contra nenhuma forma de opressão.

 

A luta contra o sistema patriarcal não é uma luta secundária.

 

A população é uma mulher

Não sou a primeira pessoa que reconhece que Trump e Bolsonaro praticam gaslighting. Gaslighting, para quem não sabe, é uma técnica de poder e controle muito utilizada por homens contra mulheres em seus relacionamentos íntimos. O gaslighter se beneficia da cultura mais ampla que educa homens e mulheres para exercerem comportamentos opostos. Homens são ensinados a identificar-se com o poder, com a superioridade, com a força, com a razão, com a inteligência. Mulheres são educadas para identificar-se com a submissão, com a fragilidade, com a necessidade de proteção, com a emoção e com a ignorância.

 

O ideal de amor romântico faz com que muitas mulheres acreditem que um homem deva ser tudo na vida para elas, a razão da vida delas, e buscarão com avidez o homem que encarne esse papel.

 

Dadas essas condições, um homem diante de uma mulher assim, poderá facilmente exercer seu poder. A fim de destituí-la de autonomia, iniciativa, independência, a fará acreditar que ela está louca, que ela não sabe o que quer, que ela não sabe escolher, não sabe decidir. O gaslighter consegue colocar essa mulher numa espécie de jaula mental, da qual ela só sairá quando ele permitir ou quando o desejo imperioso de ser livre a fizer romper os grilhões. O processo até a libertação costuma ser lento, com muitos avanços e recuos e solitário, pois amigos e parentes identificam o comportamento contraditório da mulher como um empecilho à ajuda. Os benefícios que o gaslighter tira dessa capacidade de controle total da mulher variam. Mas todos eles envolvem o prazer de dominar, de ver sua vítima prostrada, como um fantoche.

 

O que pretendo chamar a atenção aqui não é tanto para a condição da mulher, mas para a condição do País. Se Bolsonaro faz uso de uma técnica machista de modo tão eficiente contra a população, o que faz a população se assemelhar a uma mulher? Qual é a natureza da jaula mental através da qual sua política encerra toda uma nação? Vejamos.

 

A mulher é ensinada que é fraca, indefesa, incapaz de forjar por si mesmas as condições de uma boa vida. Por isso, precisa ter um homem que lhe proteja, que cuide dos seus interesses e do seu bem estar integral.

 

Do mesmo modo a população. A população é ensinada que é fraca, indefesa, incapaz de forjar por si mesma as condições de uma boa vida. Assim, precisa que o Estado lhe proteja, cuide de seus interesses e do seu bem estar integral.

 

A mulher é ensinada que não há felicidade e segurança fora do casamento com um homem. Do mesmo modo a população é ensinada que não há felicidade e segurança sem o Estado.

 

Assim, da mesma maneira que o homem machista, o Estado fala e faz coisas que soam como absurdas (e são), faz parecer que tem um poder total sobre toda a população, que está em pleno controle da situação de dominação (e está). Mas está não porque seja onipotente.

 

Enquanto a mulher não vislumbra vida autônoma e feliz fora do relacionamento com o homem, ela não consegue se libertar dele. E, de fato, muitas são assassinadas quando atingem essa iluminação. Milhares de feminicídios anuais no Brasil têm o fim de impedir que essas mulheres que se libertaram por conta própria vejam a luz do dia, que sejam exemplos para as outras, que sigam ameaçando o poder masculino.

 

Da mesma forma a população. Enquanto ela não vislumbra vida possível sem o Estado, o Estado continua dando as cartas, fazendo o que bem entende, tripudiando sobre todas e todos nós.

 

Se houve algum momento na história em que a classe governada apresentou alguma ameaça ao Estado e ao capital, foi quando perseguiu um ideal de estado diferente do que existia. Hoje, depois das inúmeras experiências históricas exemplares, sabemos que esse ideal era falso. Não precisamos de um outro Estado, simplesmente não precisamos de Estado.

 

Ser submissa aos padrões conservadores de sua classe social não poupou a vida da médica

 

Quando se diz que a elite é conservadora, muitas pessoas não entendem bem o que isso quer dizer. No que concerne à mulher, significa que ela não passa de uma sombra do homem. Mesmo tendo profissão, alto nível educacional e independência financeira, sem um homem de sua classe social, a mulher separada experimenta uma drástica queda em seu status e se vê quase expulsa da high society. Como mulher separada, ela é vista pelas “amigas” casadas como uma ameaça, e é, assim, empurrada para um espécie de limbo. Daí o esforço imenso que mulheres da classe alta fazem para estar casadas e se manterem nessa condição. Suportam tudo em silêncio: agressões, humilhações, ameaças. Só não contam que, vez ou outra, esse sacrifício todo acaba não sendo suficiente: alguns maridos também gostam de matar.

E foi o que aconteceu com a médica residente no Estado de Santa Catarina, Lucia Regina Gomes Mattos Shultz, 60 anos. No dia 19 de março, em plena quarentena, ela foi estrangulada pelo companheiro, Nelson Pretzel, de 65 anos. Na matéria jornalística que noticiou o caso, o feminicida teria confessado o crime: “Aos policiais, o idoso contou que os dois estavam discutindo e ela deu um tapa no rosto dele. Em seguida, ele apertou o pescoço da esposa com as duas mãos. Quando a viu caindo no chão, fugiu do apartamento”. Notem que o qualificativo “idoso” acaba suavizando o caráter do feminicida. Mas o “idoso” estrangulou a “amada” até a morte. Ainda, “quando a viu caindo no chão, fugiu”: o bom idoso não teve o ímpeto de buscar socorro para sua amada, mas sim de escapar da cena do crime.

Uma rápida visita ao facebook do casal faz parecer que eles se amavam intensamente. O perfil da médica para além de revelar seu conservadorismo político (apoio à redução da maioridade penal, apoio a Bolsonaro etc) indica a grande importância que ela atribuía à publicidade do seu relacionamento conjugal. O perfil dele é totalmente direcionado a publicizar o suposto amor dele pela companheira: a esmagadora maioria das postagens refere-se a imagens do casal. Isso, convenhamos, certamente contará a favor dele no tribunal: matou não porque era um supremacista masculino que não suportou receber um tapa na cara de uma mulher. Matou  por “surpresa, medo ou violenta emoção”, parodiando Moro.

O perfil dos dois no facebook parece ter sido criado com o único fim de publicizar a união deles, o que não seria nenhum absurdo, dada a hipocrisia corrente nas relações conjugais entre casais ricos.

Mas o que mais chama a atenção é o pacto de silêncio que a elite faz para esconder os crimes praticados pelos homens de sua camada social. A notícia anunciada pelo jornal NSC foi absolutamente omissa quanto à identidade da vítima e do assassino, que havia confessado.

O sindicato dos médicos publicou em seu site um obituário no qual não fez qualquer menção ao ato que levou à morte precoce da colega de profissão e, consequentemente, não manifestou qualquer repúdio à tamanha injustiça. Informa e lamenta o falecimento como se tivesse acontecido uma morte natural.  Teria agido do mesmo modo se fosse um colega do sexo masculino a vítima? Duvido.

Esse silêncio não é ocasional: revela a conivência da elite com os crimes cometidos por seus membros masculinos, sobretudo se ocorrem contra mulheres. Revela, ainda, que uma mulher branca e rica não vale tanto quanto um homem branco e rico. Estar casada, aumenta o status da mulher, seu valor social. Não é por outro motivo que ela tolera submeter-se a diversos níveis de violência para manter-se casada.

Lucia Regina defendeu a redução da maioridade penal em sua rede social. Apoiava resposta estatal dura contra os criminosos, independentemente (em tese) de qualquer coisa. É de se supor portanto que, sendo ela mesma a vítima, iria desejar a máxima punição para seu assassino. Mas, pelo modo como o crime foi noticiado, pelo silêncio das instituições às quais Lucia pertencia, pelo que sabemos sobre as relações entre os sexos, desconfio que isso não irá acontecer. Diante de um homem, branco e rico, ela, mesmo sendo branca e rica, não vale tanto.

 

Cleonice Gonçalves, empregada doméstica, morta pelo coronavírus. Pelo coronavírus?

Cleonice Gonçalves, empregada doméstica, morta pelo coronavírus. Pelo Coronavírus?

 

 

Hoje saiu uma matéria no Jornal a Folha de São Paulo sobre as duas primeiras mortes por coronavírus no Estado Rio de Janeiro.

 

O primeiro caso foi de uma mulher de 63 anos, chamada Cleonice Gonçalves, empregada doméstica, que contraiu o vírus através da patroa, que havia retornado da Itália, um dos países mais atingidos pela doença. Segundo esta notícia, a empregada morava no trabalho e, no dia 13 de março começou a sentir os sintomas. Foi ao hospital, mas não recebeu o tratamento adequado, tendo recebido alta para continuar o tratamento em casa, a base de antibiótico. Com a piora do quadro, foi internada no dia 16 e faleceu no dia 17. Ela era portadora de hipertensão e diabetes.

 

O outro caso foi de um homem de 69 anos (cujo nome, curiosamente, não foi revelado na matéria) também diabético e hipertenso. Ele contraiu o vírus do enteado, que havia regressado dos Estados Unidos.

 

No dia anterior, sem saber desse acontecimento, eu tinha lido um meme em que uma patroa teria sido a responsável pela morte de sua empregada. O meme me deixou intrigada, vez que não tinha visto nenhuma postagem semelhante sobre homens transmitindo o vírus.

 

Analisemos, pois, a matéria através das lentes roxas.

 

Primeiro, uma pessoa assintomática, que não foi proibida de entrar no País, mesmo seu voo tendo partido de um dos países mais fortemente afetados pelos vírus. (Importante lembrar que até o presente momento, os aeroportos brasileiros continuam abertos.)

 

Segundo, a não execução pelo hospital de um protocolo para identificar se a pessoa poderia ter tido contado com outra infectada.

 

Terceiro, os diagnósticos tardios. A matéria revela que os diagnósticos do coronavírus só foram apresentados após o falecimento das vítimas. O diagnóstico da patroa também teria saído apenas no dia 17.

 

Assim, conquanto possa haver alguma falta de empatia da patroa (e geralmente há), não seria mais compreensível responsabilizar primeiramente o governo por essas mortes uma vez que 1) mantém a principal porta de entrada do vírus aberta; 2) não garante as condições ao pessoal da saúde para seguir um protocolo de segurança hospitalar para detectar com mais rapidez os casos suspeitos; 3) nunca promoveu qualquer política pública capaz de aumentar a solidariedade entre as pessoas, mas, ao contrário, cada vez mais promove o egoísmo, o “salve-se quem puder”, e a “lei do mais forte”?

 

Até segunda-feira (16), ao menos em São Paulo, a orientação para que os indivíduos (e não apenas as instituições) adotassem a quarentena ainda não era apresentada como uma obrigação. Minha filha frequentou sua escola, eu o curso presencial no qual estou matriculada e meu companheiro deu aulas quase normalmente.

 

Assim, se tem algo pelo qual a patroa deve se envergonhar é o de ter uma empregada que dorme em sua casa e por cujos trabalho e dedicação (pelo perfil socioeconômico da empregada mencionado na matéria) retribui de modo absolutamente injusto.

 

Aqui, interessa ressaltar que o simples fato de a maioria das patroas ser branca e de classe média e alta é a evidência mais cabal de que elas também não estão libertas dos papéis atribuídos exclusivamente à mulher no que concerne aos cuidados das pessoas e do lar. O homem, sobretudo o homem branco de classe média e alta, continua completamente fora do campo de crítica dessas relações injustas no âmbito doméstico.

 

A gigante diferença entre a mulher branca de classe média e alta e a mulher preta e pobre é que a condição social e a capacidade econômica daquela, frequentemente derivada da capacidade econômica do marido, a possibilita transferir a maior e mais pesada parte de suas obrigações a esta, em troca de um salário muitas vezes mínimo.

 

Outro efeito da capacidade econômica da mulher rica, e talvez o efeito mais importante, é ela não fazer nenhuma vinculação da sua condição com a condição da mulher a quem transfere suas obrigações.

 

Costumo dizer que a base do casamento burguês é a empregada doméstica. Sem ela, o casamento desmorona.

 

Não custa lembrar ainda que a maioria esmagadora dos meios de produção estão nas mãos dos homens brancos. São eles que pagam a maior parte de todos os salários. São eles que escolhem pagar salários para as mulheres brancas 70% maiores que para as mulheres negras. Não são as mulheres que tomam essas decisões.

 

Se observarmos bem, perceberemos que todas as críticas sobre a manutenção da empregada no trabalho durante a quarentena têm sido, explícita ou implicitamente, dirigidas exclusivamente às patroas. Ninguém fez campanha exortando os patrões a assumir sua parte nas obrigações do lar.

 

As relações de trabalho entre a mulher branca burguesa e a mulher preta e pobre estão atravessadas pela indiferença do macho branco às obrigações domésticas.

 

Essa indiferença também se observa nos homens negros e pobres. Na sua casa, também são elas, as mulheres negras, as que fazem a maior parte das tarefas domésticas, senão toda ela. Não ter ninguém abaixo delas para dividir ou transferir essa sobrecarga empurra a mulher preta e pobre para a luta política. Ela resiste, cobra, enfrenta, tenta livrar-se do homem e é, por conta disso, 70% das vítimas de feminicídio.

 

Assim, se a mulher branca deve ser responsabilizada por algo, deve ser muito mais pelo fato de preferir ter uma empregada doméstica a questionar os padrões sociais machistas que a fazem sentir necessidade de ter uma pagando a ela o que o mercado estabelecido pelos homens pagam.

 

E que a crítica à manutenção das empregadas no trabalho durante a quarentena deixe de ser uma crítica seletiva, abrangendo também os principais responsáveis por essa situação: os patrões.

A criação do patriarcado

O livro A criação do patriarcado, de Gerda Lerner, é leitura fundamental para a compreensão do sistema de dominação masculina.

Amor Maldito: um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos

Amor maldito  (contém spoiler)

Amor maldito é um dos filmes mais sensíveis que já vi. O orgulho de saber que ele é produção nossa é imenso. E mais que nosso, é filme independente, realizado de modo colaborativo, através da comunhão e dos esforços de um conjunto de pessoas que apostaram na potência dele.
Amor maldito conta a história do amor entre duas mulheres. Foi escrito e dirigido pela mineira Adélia Sampaio. Em 2013, por meio de sua tese de doutorado, a pesquisadora Edileuza Penha de Souza tirou o filme dos umbrais do esquecimento e o reapresentou ao Brasil e ao mundo revelando que se tratava do primeiro longa-metragem brasileiro dirigido por uma mulher negra. Não é pouca coisa. Era 1984. O prestígio dos ditadores declinava mas a intervenção nas liberdades individuais continuava firme.
Adélia conta que, por pouco, o filme não foi rodado. Foi preciso aceitar que o regime o classificasse como pornografia para que ele pudesse ser exibido nos cinemas. Isso diz muito sobre a política supremacista masculina do estado brasileiro, que apesar de uma breve e suave amenizada, continua a todo vapor no momento atual.
Mas não, o filme não é pornográfico. Muito longe disso, o que há são belas e bem colocadas cenas de sexo entre as protagonistas, Sueli e Fernanda.
Elas se conhecem numa situação de trabalho e voltam a se reencontrar na praia, em um momento de lazer. Fernanda está acompanhada de outras amigas, com as quais brinca e se diverte. É simpática, amistosa e logo busca incluir sua nova amiga no grupo.
Fernanda parece bem estabelecida financeira e emocionalmente, mas Sueli vive uma verdadeira catástrofe pessoal. Uma imperiosa necessidade de viver a impele aos seus primeiros esboços de autonomia e independência. Ela cresceu numa família evangélica, com um pai fundamentalista, violento, e uma mãe submissa a ele. Como grande parte das meninas criadas em ambiente opressivo, era carente de reconhecimento e via sua beleza física natural como seu único meio de ascensão social. Era confusa, ingênua e, como também é comum entre mulheres oprimidas, fascinada pelo poder masculino. Na percepção fantástica de Sueli, seriam homens os que satisfariam seu desejo de visibilidade, riqueza e poder. Escolheu ser miss.
Ao anunciar sua decisão à família, Sueli é agredida e expulsa de casa pelo pai. Será Fernanda quem se solidarizará com ela e lhe oferecerá abrigo e apoio afetivo. Elas se apaixonam, se comprometem entre si, mas Sueli é incapaz de reconhecer uma mulher, Fernanda, como um apoio seguro e a menospreza, entregando-se (neste caso, o termo é “entregar-se” mesmo) a um fotógrafo a quem julga poder aproximá-la do sonho do estrelato. Não passando de um objeto para o homem, que nenhuma preocupação tem em controlar sua fertilidade, ele a engravida e depois a renega. Desiludida, confusa e humilhada, Sueli dá por fracassado seu voo rumo à condição de pessoa digna de valor, e se suicida jogando-se da janela do apartamento de Fernanda. Com isso, mais uma vez a pune. Fernanda, não sem sofrimento e contradições, já tinha aceitado a escolha de Sueli, mas por ter a amada se suicidado em seu apartamento, é sobre ela que pesa a acusação de homicídio, o que a conduz ao verdadeiro calvário do tribunal do juri.
A construção do julgamento por Adélia Sampaio é um trabalho de mestre. Fernanda é torturada psicologicamente, tem sua intimidade devassada, exposta e deformada. Um dos momentos altos do filme é quando, nos bastidores do julgamento, advogados da acusação e da defesa, na presença do juiz, todos homens, contemporizam e se deliciam com as fotos íntimas da falecida e da ré, mostrando que a rivalidade encenada diante do juri não passava, de fato, de um teatro, pois na prática, eles sempre foram cúmplices.
Essa cumplicidade fica ainda mais evidente quando o homem que engravidou Sueli nega qualquer envolvimento com ela, apresentando como justificativa o fato de ser casado. Os advogados, que tudo sabiam sobre a vida íntima das testemunhas, evitam ambos constrangê-lo com mais perguntas, diferentemente do modo insidioso e violento que vinham aplicando à inquirição das demais testemunhas, sobretudo mulheres. A diretora mais uma vez ressalta a ampla aliança entre homens: advogados da defesa e da acusação, juiz e testemunha.
Mas é o testemunho corajoso e honesto de outras mulheres e pessoas próximas, que não se deixaram intimidar, que possibilita a absolvição de Fernanda.
Há pouquíssimos negros no filme. E talvez seja sua única lacuna.
O filme acaba belissimamente com uma visita de Fernanda ao túmulo de Sueli onde escreve emocionada: “Só eu te amei”. E, de fato, Sueli não foi amada por nenhum homem, não foi amada pela mulher mais importante da sua vida, sua própria mãe, tão dominada e submissa que era.
Tanto não foi amada, que quando encontrou o amor, não soube reconhecê-lo.

Era uma vez… em Hollywood

Era uma vez… em Hollywood (contém spoiler)

Era uma vez…em Hollywood certamente está entre os filmes mais deprimentes de Quentin Tarantino e é, com certeza, um dos mais degradantes da condição da mulher levados à Cannes em 2019.

Durante todo o filme, o que se vê é um espetáculo de glorificação do homem, de suas armas de fogo usadas para matar e intimidar em busca de poder, dinheiro e fama, e em menor proporção, mulheres. Estas não valem sequer o esforço. Desde a primeira aparição no filme, não passam de corpos descerebrados, lascivos, lúbricos e loucos para se satisfazer sexualmente com todo e qualquer homem, desde desconhecidos motoristas de passagem até velhos decrépitos e deficientes. Por que, afinal, como todas sabemos, não são esses que diariamente, mundo a fora, sob todo tipo de artifício, seduz, sequestra, domina, ameaça, agride meninas e mulheres para seu uso sexual pessoal e coletivo.
Nenhuma, absolutamente nenhuma mulher é ouvida em Era uma vez…em Hollywood. A voz feminina só é aceita se para concordar e obedecer. Toda e qualquer tentativa de argumentação por parte delas é deliberadamente ignorada. Mulheres sem cérebro não devem ter seus argumentos considerados, menos ainda ter a palavra final. E como corpos à disposição dos homens que são, nada mais coerente que focalizá-las o máximo possível de costas e de baixo para cima em seus colants, mini saias e shorts minúsculos. As gordas não. As gordas devem estar cobertas. Acho que já identificamos aí os biotipos femininos preferidos do público que a direção pretende atingir.

O movimento hippie também, plural e amplo como foi, não saiu ileso. Seus seguidores não passavam de indivíduos imbecis, fracos, desonestos e estúpidos. Claro, opor-se à política institucional, à conduta belicista de seu próprio país, ao covarde e bárbaro massacre de vietnamitas entre outras formas da América levar seu modo de vida ao mundo só pode ser coisa de babacas otários. A essa classe de indivíduos, assim como à classe das mulheres, os homens não devem qualquer reconhecimento de dignidade humana e respeito. Assim, sob qualquer pretexto, eles podem desferir os mais absurdos ataques físicos e psicológicos, pois ainda que estejam em maior número diante do agressor, como disse acima, hippies  (e mulheres) são imbecis e fracos, são portanto incapazes de reagir. A história parece mostrar uma versão diferente.

A relação de classe também está posta. Os dois personagens principais tem entre si uma relação de vassalagem. Enquanto um aufere todo o reconhecimento simbólico e material do trabalho de ambos, ou outro se mantém fiel e satisfeito com as migalhas que recebe do primeiro, mesmo quando estas são reduzidas a um patamar ainda menor. O trabalho precarizado, inseguro, a absoluta desigualdade material entre chefe e empregado não são elementos suficientes para criar um ruído, um ressentimento.

Na verdade, o empregado, sabidamente um femicida, é o melhor, o mais fiel e único amigo do patrão, e com ele mantém a relação mais afetuosa do filme. O empregado oferece não apenas serviços profissionais, mas também apoio psicológico ao patrão que é só instabilidade emocional diante da iminente perda de visibilidade e fama no cinema. O empregado também arrisca sua vida para defender o patrão. São virtualmente um casal, só não transam entre si.
E a tolerância com criminosos contra mulheres não alcança apenas o femicida amigo do protagonista. Tarantino indiretamente, mas de modo muito contundente, absolve Roman Polaski, condenado pelo estupro de uma menina de 13 anos, após sedá-la, em 1977. A mensagem está dada: crimes contra mulheres não são importantes, pratique-os à vontade.
Destruir simbolicamente a mulher enquanto ser humano, atacar um dos maiores movimentos contra-hegemômicos e contraculturais da história recente, ao mesmo tempo que valida e reforça a violência masculina e as relações de afeto e lealdade apenas entre homens parece ser algo que vem muito a calhar neste momento histórico em que o capital, cada vez mais, arranca das costas da mulher, com seus empregos precários, terceirizados, sem direitos, a conta da crise. Que esses seres inferiores, repugnantes, dados aos apelos de seu sexo, aceitem essa condição. Caso não aceitem, movimentos de esquerda débeis não serão capazes de apoiá-la, e os homens poderão mostrar, com requintes de crueldade e aprovação pública, quem está no comando.

A sacada do diretor é o humor. O público gargalhava com uma mulher hippie sendo carbonizada pelo protagonista com um lança chamas. Sim. Foi um horrendo espetáculo de ódio contra as mulheres.