Cleonice Gonçalves, empregada doméstica, morta pelo coronavírus. Pelo coronavírus?

Cleonice Gonçalves, empregada doméstica, morta pelo coronavírus. Pelo Coronavírus?

 

 

Hoje saiu uma matéria no Jornal a Folha de São Paulo sobre as duas primeiras mortes por coronavírus no Estado Rio de Janeiro.

 

O primeiro caso foi de uma mulher de 63 anos, chamada Cleonice Gonçalves, empregada doméstica, que contraiu o vírus através da patroa, que havia retornado da Itália, um dos países mais atingidos pela doença. Segundo esta notícia, a empregada morava no trabalho e, no dia 13 de março começou a sentir os sintomas. Foi ao hospital, mas não recebeu o tratamento adequado, tendo recebido alta para continuar o tratamento em casa, a base de antibiótico. Com a piora do quadro, foi internada no dia 16 e faleceu no dia 17. Ela era portadora de hipertensão e diabetes.

 

O outro caso foi de um homem de 69 anos (cujo nome, curiosamente, não foi revelado na matéria) também diabético e hipertenso. Ele contraiu o vírus do enteado, que havia regressado dos Estados Unidos.

 

No dia anterior, sem saber desse acontecimento, eu tinha lido um meme em que uma patroa teria sido a responsável pela morte de sua empregada. O meme me deixou intrigada, vez que não tinha visto nenhuma postagem semelhante sobre homens transmitindo o vírus.

 

Analisemos, pois, a matéria através das lentes roxas.

 

Primeiro, uma pessoa assintomática, que não foi proibida de entrar no País, mesmo seu voo tendo partido de um dos países mais fortemente afetados pelos vírus. (Importante lembrar que até o presente momento, os aeroportos brasileiros continuam abertos.)

 

Segundo, a não execução pelo hospital de um protocolo para identificar se a pessoa poderia ter tido contado com outra infectada.

 

Terceiro, os diagnósticos tardios. A matéria revela que os diagnósticos do coronavírus só foram apresentados após o falecimento das vítimas. O diagnóstico da patroa também teria saído apenas no dia 17.

 

Assim, conquanto possa haver alguma falta de empatia da patroa (e geralmente há), não seria mais compreensível responsabilizar primeiramente o governo por essas mortes uma vez que 1) mantém a principal porta de entrada do vírus aberta; 2) não garante as condições ao pessoal da saúde para seguir um protocolo de segurança hospitalar para detectar com mais rapidez os casos suspeitos; 3) nunca promoveu qualquer política pública capaz de aumentar a solidariedade entre as pessoas, mas, ao contrário, cada vez mais promove o egoísmo, o “salve-se quem puder”, e a “lei do mais forte”?

 

Até segunda-feira (16), ao menos em São Paulo, a orientação para que os indivíduos (e não apenas as instituições) adotassem a quarentena ainda não era apresentada como uma obrigação. Minha filha frequentou sua escola, eu o curso presencial no qual estou matriculada e meu companheiro deu aulas quase normalmente.

 

Assim, se tem algo pelo qual a patroa deve se envergonhar é o de ter uma empregada que dorme em sua casa e por cujos trabalho e dedicação (pelo perfil socioeconômico da empregada mencionado na matéria) retribui de modo absolutamente injusto.

 

Aqui, interessa ressaltar que o simples fato de a maioria das patroas ser branca e de classe média e alta é a evidência mais cabal de que elas também não estão libertas dos papéis atribuídos exclusivamente à mulher no que concerne aos cuidados das pessoas e do lar. O homem, sobretudo o homem branco de classe média e alta, continua completamente fora do campo de crítica dessas relações injustas no âmbito doméstico.

 

A gigante diferença entre a mulher branca de classe média e alta e a mulher preta e pobre é que a condição social e a capacidade econômica daquela, frequentemente derivada da capacidade econômica do marido, a possibilita transferir a maior e mais pesada parte de suas obrigações a esta, em troca de um salário muitas vezes mínimo.

 

Outro efeito da capacidade econômica da mulher rica, e talvez o efeito mais importante, é ela não fazer nenhuma vinculação da sua condição com a condição da mulher a quem transfere suas obrigações.

 

Costumo dizer que a base do casamento burguês é a empregada doméstica. Sem ela, o casamento desmorona.

 

Não custa lembrar ainda que a maioria esmagadora dos meios de produção estão nas mãos dos homens brancos. São eles que pagam a maior parte de todos os salários. São eles que escolhem pagar salários para as mulheres brancas 70% maiores que para as mulheres negras. Não são as mulheres que tomam essas decisões.

 

Se observarmos bem, perceberemos que todas as críticas sobre a manutenção da empregada no trabalho durante a quarentena têm sido, explícita ou implicitamente, dirigidas exclusivamente às patroas. Ninguém fez campanha exortando os patrões a assumir sua parte nas obrigações do lar.

 

As relações de trabalho entre a mulher branca burguesa e a mulher preta e pobre estão atravessadas pela indiferença do macho branco às obrigações domésticas.

 

Essa indiferença também se observa nos homens negros e pobres. Na sua casa, também são elas, as mulheres negras, as que fazem a maior parte das tarefas domésticas, senão toda ela. Não ter ninguém abaixo delas para dividir ou transferir essa sobrecarga empurra a mulher preta e pobre para a luta política. Ela resiste, cobra, enfrenta, tenta livrar-se do homem e é, por conta disso, 70% das vítimas de feminicídio.

 

Assim, se a mulher branca deve ser responsabilizada por algo, deve ser muito mais pelo fato de preferir ter uma empregada doméstica a questionar os padrões sociais machistas que a fazem sentir necessidade de ter uma pagando a ela o que o mercado estabelecido pelos homens pagam.

 

E que a crítica à manutenção das empregadas no trabalho durante a quarentena deixe de ser uma crítica seletiva, abrangendo também os principais responsáveis por essa situação: os patrões.