Ser submissa aos padrões conservadores de sua classe social não poupou a vida da médica

 

Quando se diz que a elite é conservadora, muitas pessoas não entendem bem o que isso quer dizer. No que concerne à mulher, significa que ela não passa de uma sombra do homem. Mesmo tendo profissão, alto nível educacional e independência financeira, sem um homem de sua classe social, a mulher separada experimenta uma drástica queda em seu status e se vê quase expulsa da high society. Como mulher separada, ela é vista pelas “amigas” casadas como uma ameaça, e é, assim, empurrada para um espécie de limbo. Daí o esforço imenso que mulheres da classe alta fazem para estar casadas e se manterem nessa condição. Suportam tudo em silêncio: agressões, humilhações, ameaças. Só não contam que, vez ou outra, esse sacrifício todo acaba não sendo suficiente: alguns maridos também gostam de matar.

E foi o que aconteceu com a médica residente no Estado de Santa Catarina, Lucia Regina Gomes Mattos Shultz, 60 anos. No dia 19 de março, em plena quarentena, ela foi estrangulada pelo companheiro, Nelson Pretzel, de 65 anos. Na matéria jornalística que noticiou o caso, o feminicida teria confessado o crime: “Aos policiais, o idoso contou que os dois estavam discutindo e ela deu um tapa no rosto dele. Em seguida, ele apertou o pescoço da esposa com as duas mãos. Quando a viu caindo no chão, fugiu do apartamento”. Notem que o qualificativo “idoso” acaba suavizando o caráter do feminicida. Mas o “idoso” estrangulou a “amada” até a morte. Ainda, “quando a viu caindo no chão, fugiu”: o bom idoso não teve o ímpeto de buscar socorro para sua amada, mas sim de escapar da cena do crime.

Uma rápida visita ao facebook do casal faz parecer que eles se amavam intensamente. O perfil da médica para além de revelar seu conservadorismo político (apoio à redução da maioridade penal, apoio a Bolsonaro etc) indica a grande importância que ela atribuía à publicidade do seu relacionamento conjugal. O perfil dele é totalmente direcionado a publicizar o suposto amor dele pela companheira: a esmagadora maioria das postagens refere-se a imagens do casal. Isso, convenhamos, certamente contará a favor dele no tribunal: matou não porque era um supremacista masculino que não suportou receber um tapa na cara de uma mulher. Matou  por “surpresa, medo ou violenta emoção”, parodiando Moro.

O perfil dos dois no facebook parece ter sido criado com o único fim de publicizar a união deles, o que não seria nenhum absurdo, dada a hipocrisia corrente nas relações conjugais entre casais ricos.

Mas o que mais chama a atenção é o pacto de silêncio que a elite faz para esconder os crimes praticados pelos homens de sua camada social. A notícia anunciada pelo jornal NSC foi absolutamente omissa quanto à identidade da vítima e do assassino, que havia confessado.

O sindicato dos médicos publicou em seu site um obituário no qual não fez qualquer menção ao ato que levou à morte precoce da colega de profissão e, consequentemente, não manifestou qualquer repúdio à tamanha injustiça. Informa e lamenta o falecimento como se tivesse acontecido uma morte natural.  Teria agido do mesmo modo se fosse um colega do sexo masculino a vítima? Duvido.

Esse silêncio não é ocasional: revela a conivência da elite com os crimes cometidos por seus membros masculinos, sobretudo se ocorrem contra mulheres. Revela, ainda, que uma mulher branca e rica não vale tanto quanto um homem branco e rico. Estar casada, aumenta o status da mulher, seu valor social. Não é por outro motivo que ela tolera submeter-se a diversos níveis de violência para manter-se casada.

Lucia Regina defendeu a redução da maioridade penal em sua rede social. Apoiava resposta estatal dura contra os criminosos, independentemente (em tese) de qualquer coisa. É de se supor portanto que, sendo ela mesma a vítima, iria desejar a máxima punição para seu assassino. Mas, pelo modo como o crime foi noticiado, pelo silêncio das instituições às quais Lucia pertencia, pelo que sabemos sobre as relações entre os sexos, desconfio que isso não irá acontecer. Diante de um homem, branco e rico, ela, mesmo sendo branca e rica, não vale tanto.