Por que o funk misógino faz tanto sucesso entre os jovens do sexo masculino negros, pobres e periféricos?

Ontem a tarde meus pensamentos foram tomados pelas letras do funk do Mc Digu que a rapaziada tocava no último volume do som de porta-malas, na rua onde moro. Impossível não ouvir.

Foto do Mc Digu, obtida do seu Instagram.

As músicas mais tocadas, quase em looping, foram “Quem não chupa é viado” e “Banco de trás do Celta”. Depois, pesquisei outras músicas do Mc e entre elas achei essa “pérola” chamada “Dim dim dim eu vou raspar seu cabelin – quer terminar?”.

Música Quem não chupa ppk é viado

Música Banco de Trás do Celta

Letra da música Dim dim dim eu vou raspar seu cabelin - quer terminar?

A primeira música fala sobre sexo oral nas mulheres. A primeira vista, parece algo progressista, já que os homens são educados, sobretudo pela indústria da pornografia, para receber sexo oral, mas muito pouco para fazer sexo oral (muito menos fazer bem feito). Não é de hoje que o movimento feminista vem denunciando que a penetração vaginal por si só oferece pouco ou nenhum prazer à mulher. A maior parte dos homens atinge o orgasmo através da penetração, mas esse não é o caso da maioria das mulheres.  É comprovado cientificamente que o orgasmo feminino, mesmo quando se dá através da penetração, decorre da estimulação do clitóris e dos lábios vaginais, por onde o clitóris, que tem em média 10cm, se irradia. Assim, é a estimulação correta do clitóris e de toda a região clitoriana que produz o orgasmo nas mulheres. Consequentemente, nada mais prazeroso para a mulher que um parceiro ou parceira que saiba fazer um bom sexo oral.

Assim, ter uma letra de funk que estimula os homens a fazer sexo oral nas mulheres pode parecer um avanço. Mas neste caso, infelizmente, não é, sobretudo quando se considera que, para legitimar a prática, foi “preciso” circunscrevê-la no rol de masculinidades (“quem não chupa pepeca é viado”), reforçando o conjunto de ações que seriam próprias de um “macho”. A música também deixa evidente que não se trata de sexo como uma troca, sexo como uma oferta, mas, sim, como em boa parte dos funks, trata-se de sexo como espoliação, como vantagem sem contrapartida. É de se supor que um sexo oral desse tipo seja horrível para a mulher já que o sujeito sequer a vê por inteiro. Nesse sentido, é uma letra tão misógina como qualquer outra que só propõe “meter”, que só pensa o pênis como instrumento de punição e submissão da mulher.

Imagem 1 – “Decretações”

A segunda música não deixa sequer margem para dúvidas: “comer as putas da quebrada/ essa virou minha meta (…) vagabunda do caralho/ hoje eu vou te empurrar meu saco”. Aqui temos a demonstração mais cabal de que o sexo não é uma relação entre iguais, mas uma relação de poder, é o espaço onde o macho reafirma sua superioridade sobre a fêmea. Onde deveríamos encontrar um ato de entrega mútua, entre dois indivíduos politicamente iguais, que confiam um no outro, encontramos um macho poderoso, portador do falo subjugador, de um lado; e do outro, a fêmea, passiva, que sente prazer em ser humilhada.

A terceira letra chega ao ponto de ser criminosa. Prescreve como punição para a mulher que decide romper um relacionamento com um homem a eliminação de um dos maiores símbolos de feminilidade: os cabelos.

Algumas pessoas poderão dar de ombros e considerar inútil analisar as letras de funk por considerá-lo intrinsecamente degenerado e “antissocial”. Esta atitude de indiferença ao funk é tão racista e misógina quanto aquela que deseja e apoia sua perseguição e criminalização. Racista porque menospreza seu público. O funk, ao lado das igrejas, é uma das poucas indústrias de entretenimento presentes na periferia e é uma das que mais movimenta a economia local, sendo consumido por milhões de jovens. E misógina porque abre mão de fazer o embate ideológico tão necessário para fortalecer meninas e jovens mulheres diante de tão violentos ataques à sua condição de pessoa.

O funk, como estilo musical, não se diferencia de nenhum outro em valor, riqueza, importância, capacidade de oferecer prazer estético e transcendência. O funk, em si, é neutro e como qualquer outra arte, pode ser usado para promover a libertação ou para fortalecer a dominação. Na minha opinião, é esse aspecto do funk, o seu uso político, que deve ser alvo de crítica.

Todos os dias saem nos jornais notícias de mulheres assassinadas por seus parceiros e ex-parceiros. A maioria delas são mulheres pobres e negras. Uma pesquisa do IBGE nos fez saber que a maioria dos casamentos no Brasil são intrarraciais, isto é, entre pessoas do seu mesmo grupo racial. Sendo assim, é de se supor que essas mulheres são assassinadas por pessoas de sua mesma classe social e raça. Isso significa dizer que grande parte dos homens e mulheres pobres e negros não são aliados, mas, ao contrário, estabelecem entre si relações de poder em que o homem domina a mulher. O feminicídio é apenas a ponta do iceberg de toda uma estrutura social que oprime a mulher e a mantém subjugada, a medida que oferece uma ilusão de poder aos homens bastante conveniente ao sistema capitalista.

Imagem 2 – Raspagem do cabelo como punição de mulheres por homens

Homens são educados através de todas as formas de manifestação artística a odiar as mulheres, a desumanizá-las, a se apropriar da sexualidade delas tornando-a um instrumento de uso pessoal e coletivo, e a transformá-las em coisas frente às quais eles podem exercer as mais criativas e cruéis formas de poder.

Nesse sentido, o funk (mas não só, que fique evidente) tem sido usado como um poderoso meio para disseminar entre jovens pobres e periféricos um modelo de masculinidade que é intrinsecamente supremacista e se baseia no ódio contra as mulheres. O funk misógino têm educado os rapazes sobre “o que é ser homem”. A masculinidade hegemônica é encarnada pelo homem branco, heterossexual e rico. Ele “tem” mulheres, veículos de luxo, roupas de grife, subordinados e podem obter anuência tanto pela concessão de benefícios e privilégios quanto pela negação deles. Ele têm poder porque a sociedade foi toda estruturada para beneficiá-lo. Diferentemente da mulher preta que continuou explorada como empregada doméstica  e na casa grande, o homem preto foi literalmente jogado na marginalidade com o fim da escravidão. Ele é um refugo dessa sociedade; não tem, portanto, meios de ostentar essa masculinidade, ao menos não dentro da lei. No entanto, essa é a única forma de ser homem que ele aprendeu e que é reforçada todos os dias, inclusive através da música que ele mais gosta. Tendo a mãe e o pai, quando este é presente, superexplorados e precarizados, ou desempregados, vivendo de “bico” um dia de cada vez, o jovem preto e periférico não tem como ostentar bens de luxo e roupas de marca, a menos que roube; não tem como ter subordinados, a menos que entre para a empresa do tráfico e suba na hierarquia, não tem como obter anuência, a menos que use a violência. Outros modos se conquistar superioridade, como o futebol, a música, atraem milhões de jovens, mas premia apenas alguns poucos. A educação, a carreira militar e religiosa são outras alternativas, mas exigem alguns requisitos inatingíveis para muitos jovens pobres. A única “coisa” que o jovem periférico tem, com certeza e independente de condicionantes, para exercer sua masculinidade, isto é, seu poder “natural” conferido a ele ao nascer pelo patriarcado, é a mulher. É sobre as meninas e jovens mulheres que os rapazes, independente de se tornarem ladrões, traficantes ou valentões (ou tudo isso junto), tem certeza que poderão se sentir superiores. Daí o motivo pelo qual o funk proibidão faz tanto sucesso entre eles.

       

A dominação da mulher, da jovem mulher, nesse contexto, para grande parte dos rapazes é o  elemento mais acessível  para compor sua masculinidade. E elas, não tendo acesso a um discurso feminista consequente, pois o discurso que chega só as têm feito tirar a roupa mais cedo, mais fácil, e para mais pessoas (para o mundo inteiro, na verdade, através das redes sociais), não conseguindo acessar um discurso contrahegemônico que seja capaz de fortalecê-las diante dessas estruturas, acabam, em incontáveis casos, sucumbindo à ideologia machista e introjetando a misoginia. Desenvolvem prazer em ser usadas, exibidas como troféu e em rivalizar com suas iguais. Além disso, reforçam o comportamento masculino misógino ao menosprezar os homens em quem não reconhecem aqueles sinais de poder.

Algumas poucas tentam fazer uso do funk para se afirmar, afirmar a humanidade da mulher, mas tendo como referência de poder apenas o poder masculino, recaem no erro de tentar inverter o discurso como se tivessem em pé de igualdade com o homens: se auto proclamam fortes, fazendo no plano da arte, da ficção, o que os homens fazem com elas na arte e na vida real, o que, evidentemente, surge pouco ou nenhum efeito estrutural.

Enquanto o sentimento de poder dos jovens pretos, pobres, favelados ou de quebrada tiver como um dos seus principais pilares a anulação, a desumanização, a dominação das mulheres pretas, pobres e faveladas, nenhuma luta conjunta e eficaz poderá ser travada contra nenhuma outra forma de opressão.

Enquanto as jovens pretas, pobres e faveladas ou de quebrada acreditarem que têm apenas seu corpo e sua sexualidade como elemento de poder, nenhuma luta conjunta e eficaz poderá ser travada contra nenhuma forma de opressão.

 

A luta contra o sistema patriarcal não é uma luta secundária.

 

Cleonice Gonçalves, empregada doméstica, morta pelo coronavírus. Pelo coronavírus?

Cleonice Gonçalves, empregada doméstica, morta pelo coronavírus. Pelo Coronavírus?

 

 

Hoje saiu uma matéria no Jornal a Folha de São Paulo sobre as duas primeiras mortes por coronavírus no Estado Rio de Janeiro.

 

O primeiro caso foi de uma mulher de 63 anos, chamada Cleonice Gonçalves, empregada doméstica, que contraiu o vírus através da patroa, que havia retornado da Itália, um dos países mais atingidos pela doença. Segundo esta notícia, a empregada morava no trabalho e, no dia 13 de março começou a sentir os sintomas. Foi ao hospital, mas não recebeu o tratamento adequado, tendo recebido alta para continuar o tratamento em casa, a base de antibiótico. Com a piora do quadro, foi internada no dia 16 e faleceu no dia 17. Ela era portadora de hipertensão e diabetes.

 

O outro caso foi de um homem de 69 anos (cujo nome, curiosamente, não foi revelado na matéria) também diabético e hipertenso. Ele contraiu o vírus do enteado, que havia regressado dos Estados Unidos.

 

No dia anterior, sem saber desse acontecimento, eu tinha lido um meme em que uma patroa teria sido a responsável pela morte de sua empregada. O meme me deixou intrigada, vez que não tinha visto nenhuma postagem semelhante sobre homens transmitindo o vírus.

 

Analisemos, pois, a matéria através das lentes roxas.

 

Primeiro, uma pessoa assintomática, que não foi proibida de entrar no País, mesmo seu voo tendo partido de um dos países mais fortemente afetados pelos vírus. (Importante lembrar que até o presente momento, os aeroportos brasileiros continuam abertos.)

 

Segundo, a não execução pelo hospital de um protocolo para identificar se a pessoa poderia ter tido contado com outra infectada.

 

Terceiro, os diagnósticos tardios. A matéria revela que os diagnósticos do coronavírus só foram apresentados após o falecimento das vítimas. O diagnóstico da patroa também teria saído apenas no dia 17.

 

Assim, conquanto possa haver alguma falta de empatia da patroa (e geralmente há), não seria mais compreensível responsabilizar primeiramente o governo por essas mortes uma vez que 1) mantém a principal porta de entrada do vírus aberta; 2) não garante as condições ao pessoal da saúde para seguir um protocolo de segurança hospitalar para detectar com mais rapidez os casos suspeitos; 3) nunca promoveu qualquer política pública capaz de aumentar a solidariedade entre as pessoas, mas, ao contrário, cada vez mais promove o egoísmo, o “salve-se quem puder”, e a “lei do mais forte”?

 

Até segunda-feira (16), ao menos em São Paulo, a orientação para que os indivíduos (e não apenas as instituições) adotassem a quarentena ainda não era apresentada como uma obrigação. Minha filha frequentou sua escola, eu o curso presencial no qual estou matriculada e meu companheiro deu aulas quase normalmente.

 

Assim, se tem algo pelo qual a patroa deve se envergonhar é o de ter uma empregada que dorme em sua casa e por cujos trabalho e dedicação (pelo perfil socioeconômico da empregada mencionado na matéria) retribui de modo absolutamente injusto.

 

Aqui, interessa ressaltar que o simples fato de a maioria das patroas ser branca e de classe média e alta é a evidência mais cabal de que elas também não estão libertas dos papéis atribuídos exclusivamente à mulher no que concerne aos cuidados das pessoas e do lar. O homem, sobretudo o homem branco de classe média e alta, continua completamente fora do campo de crítica dessas relações injustas no âmbito doméstico.

 

A gigante diferença entre a mulher branca de classe média e alta e a mulher preta e pobre é que a condição social e a capacidade econômica daquela, frequentemente derivada da capacidade econômica do marido, a possibilita transferir a maior e mais pesada parte de suas obrigações a esta, em troca de um salário muitas vezes mínimo.

 

Outro efeito da capacidade econômica da mulher rica, e talvez o efeito mais importante, é ela não fazer nenhuma vinculação da sua condição com a condição da mulher a quem transfere suas obrigações.

 

Costumo dizer que a base do casamento burguês é a empregada doméstica. Sem ela, o casamento desmorona.

 

Não custa lembrar ainda que a maioria esmagadora dos meios de produção estão nas mãos dos homens brancos. São eles que pagam a maior parte de todos os salários. São eles que escolhem pagar salários para as mulheres brancas 70% maiores que para as mulheres negras. Não são as mulheres que tomam essas decisões.

 

Se observarmos bem, perceberemos que todas as críticas sobre a manutenção da empregada no trabalho durante a quarentena têm sido, explícita ou implicitamente, dirigidas exclusivamente às patroas. Ninguém fez campanha exortando os patrões a assumir sua parte nas obrigações do lar.

 

As relações de trabalho entre a mulher branca burguesa e a mulher preta e pobre estão atravessadas pela indiferença do macho branco às obrigações domésticas.

 

Essa indiferença também se observa nos homens negros e pobres. Na sua casa, também são elas, as mulheres negras, as que fazem a maior parte das tarefas domésticas, senão toda ela. Não ter ninguém abaixo delas para dividir ou transferir essa sobrecarga empurra a mulher preta e pobre para a luta política. Ela resiste, cobra, enfrenta, tenta livrar-se do homem e é, por conta disso, 70% das vítimas de feminicídio.

 

Assim, se a mulher branca deve ser responsabilizada por algo, deve ser muito mais pelo fato de preferir ter uma empregada doméstica a questionar os padrões sociais machistas que a fazem sentir necessidade de ter uma pagando a ela o que o mercado estabelecido pelos homens pagam.

 

E que a crítica à manutenção das empregadas no trabalho durante a quarentena deixe de ser uma crítica seletiva, abrangendo também os principais responsáveis por essa situação: os patrões.